Desde 1997, foram mortas ao menos 14 pessoas ligadas à política municipal de Magé, cidade a 60 km da capital e com cerca de 230 mil habitantes na Baixada Fluminense, uma das regiões mais pobres do Rio de Janeiro.
O rastro de sangue inclui uma vice-prefeita carbonizada, um vereador assassinado com a mãe e um parlamentar alvejado e morto dentro do estacionamento da Câmara Municipal.
Dois desses 14 homicídios ocorreram em 2016.
Em janeiro, o vereador Geraldo Gerpe (PSB), o Geraldão, foi abordado quando estava em seu carro, no estacionamento da sede da Câmara de Magé, e assassinado a tiros.
Seis meses depois, a pré-candidata a vereadora Agá Lopes Pinheiro (DEM) foi alvejada quando estava com o marido em um bar no bairro da Barbuda. Os inquéritos estão a cargo da DHBF (Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense).
Até agora, as investigações policiais avançaram pouco e não houve desfecho para a maioria dos casos. Alguns inquéritos foram concluídos, mas os denunciados à Justiça ainda aguardam o julgamento.
Procurada, a Polícia Civil não quis se posicionar. O UOL entrou em contato em duas ocasiões com a assessoria de comunicação, que não respondeu à demanda enviada pela reportagem.
A violência condicionada a circunstâncias eleitorais ou disputas de poder não se limita a Magé. Trata-se de uma realidade que se aplica a outras cidades da Baixada, onde há rivalidades históricas entre grupos políticos, famílias tradicionais, milicianos e até traficantes de drogas, explica o sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor da tese "Baixada Fluminense: A Violência na Construção de uma Periferia".
"Magé vem produzindo isso há bastante tempo. Na cidade, existe de forma geral uma cultura de violência enraizada por dentro do Estado. Existe toda uma estrutura de poder baseada na violência enquanto moeda de troca", afirma Alves. O acadêmico também é autor do livro "Dos Barões ao Extermínio: A História da Violência na Baixada Fluminense" (Editora Sepe/APPH-Clio).
A Baixada traz esse problema da violência política com uma grande superexposição dessa estrutura de poder baseada na eliminação de oponentes. Aqueles que incomodam são eliminados.
José Cláudio Souza Alves, sociólogo
Para se ter uma ideia, desde novembro do ano passado, o número de mortes chegou a 13 em toda a Baixada Fluminense --as vítimas ocupavam cargos eletivos ou pretendiam ingressar na vida pública em municípios como Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Paracambi.
Apesar da proximidade com o período eleitoral e da afinidade política, para a polícia, apenas duas dessas ocorrências tiveram motivação político-partidária. "Cada vítima tem sua história particular, um perfil", afirma o delegado Giniton Lages, que preferiu não especificar os dois casos.
"Mesmo sabendo que a barra é mesmo pesada em alguns lugares, acho que chegamos ao fundo do poço", afirma o deputado federal Otávio Leite, presidente fluminense do PSDB. "Nossos candidatos em Magé sempre comentam esse clima violento. Alguns disseram que evitam andar na rua à noite, relatam problemas com milícias e coisas do tipo." Um dos pré-candidatos tucanos à Prefeitura de Magé desistiu da disputa neste ano, com medo de morrer.
Na sexta-feira (16), em visita ao Rio, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes afirmou que a convicção da polícia não é a mesma do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), órgão do qual é presidente. "É preciso que se faça a investigação. Mas quando há mortes de pessoas que são candidatas a determinado cargo ou pessoas ligadas a alguma atividade política, sempre há essa preocupação. Até agora nós identificamos informações de que pelo menos 24 pessoas teriam sido assassinadas num contexto político-eleitoral, e 13 dessas 24 ocorreram somente na Baixada", declarou.
Mendes disse ainda que a Baixada receberá apoio de tropas federais. Uma reunião marcada a próxima semana definirá o efetivo e o planejamento. O Rio, afirmou ele, é o Estado que demanda maior atenção. "Não preciso nem lhes contar sobre a situação do Rio de Janeiro, é dispensável. Os senhores não têm dúvida [de que a situação do Rio é a mais grave]. É talvez uma das mais graves do mundo", afirmou ele a jornalistas.
Em 2000, a Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) instaurou uma CPI para investigar os crimes contra políticos na região metropolitana do Estado. O relatório final traz como primeira conclusão que "a impunidade é o principal elemento propulsor da violência política". Após oito meses, os trabalhos foram encerrados na Casa sem que fossem imputadas responsabilidades.
"Como a situação é muito difusa e cada município tem a sua responsabilidade, fica sempre difícil apontar um núcleo", afirmou o deputado que presidiu a CPI à época, Paulo Ramos (PSOL). "Os grupos vão se afirmando a partir do controle e da submissão da população. E isso ocorre através do medo."
Política feita a bala
Em julho de 1997, o vereador Geraldo Ângelo Pereira, presidente do Grêmio Esportivo Estrela, deixava a sede do clube de futebol mageense, em Vila Inhomirim, quando foi morto a tiros por dois homens. Os criminosos fugiram.
Em 1998, mais um vereador foi morto a tiros: Valter Moraes de Arruda levou cinco tiros na barriga quando estava ao volante de seu carro, um Vectra azul, a sete quilômetros de casa, no bairro Santo Aleixo. O parlamentar era presidente da Comissão de Saúde da Câmara.
O vereador Alexandre Augusto Pereira de Alcântara, a mãe dele, Edília Rodrigues, e seu motorista e assessor parlamentar, Arnaldo de Souza Santos, foram metralhados em uma emboscada na rodovia Rio-Magé em janeiro de 2002.
Segundo o Ministério Público, o crime foi praticado a mando do então presidente da Câmara de Vereadores de Magé, Genivaldo Ferreira Nogueira, conhecido como "Batata", à época filiado ao DEM. O MP aponta que o homicídio se deu por "vingança política".
Adversário de Batata e opositor da ex-prefeita Núbia Cozzolino, Alcântara planejava "realizar uma reforma administrativa na Câmara a fim de reduzir os poderes que eram concentrados nas mãos do respectivo presidente", de acordo o processo acolhido pela Justiça. "A vítima estava, ainda, elaborando um dossiê relatando diversas irregularidades ocorridas na administração do acusado, fato que o fez eliminar seu oponente", segundo a peça.
Batata também foi denunciado à Justiça por outros três assassinatos, incluindo o da vice-prefeita de Magé Lídia Menezes, em junho de 2002. O corpo dela foi encontrado carbonizado dentro de seu carro, na estrada Magé-Manilha, a cerca de 20 km do centro de município. Dentro do veículo, peritos encontraram duas cápsulas de pistola.
Segundo apuração policial, Lídia havia quebrado um acordo político com Batata. A tucana era pré-candidata a deputada federal. Na ocasião, a então prefeita, Narriman Zito, relatou ao jornal "Folha de S.Paulo" que o clima político na cidade era "muito perigoso". "Eu mesma estou andando em carro blindado, algo que nunca pensei em fazer", declarou à época, chorando.
O nome de Batata também é mencionado em processos judiciais relativos às mortes do policial militar e vereador Dejair Corrêa (2007), presidente da Comissão de Segurança da Câmara de Magé, e do jornalista Mário Coelho (2001), dono do jornal "A Verdade", responsável por denúncias de irregularidades na prefeitura.
Genivaldo Ferreira Nogueira, o Batata, nega os crimes
O réu nega ter sido o mandante dos quatro homicídios pelos quais responde na Justiça. Ele foi detido apenas uma vez, em cumprimento a um mandado de prisão preventiva em uma das ações penais, mas deixou a cadeia após obter liminar do STF (Supremo Tribunal Federal).
Em seu pedido de habeas corpus apresentado ao Supremo, a defesa alegou que existiria uma "bem orquestrada e elaborada perseguição política" contra o acusado. Desde então, aguarda julgamento em liberdade.
No documento enviado à Corte, os advogados afirmam que Batata teria encabeçado um movimento que resultou na expulsão de policiais civis lotados na delegacia de Magé. Por esse motivo, argumentam, ele teria sido alvo de represálias. Os policiais citados pela defesa seriam milicianos e exigiriam dinheiro de comerciantes da cidade em troca de proteção.
O atraso no andamento das ações penais contra o ex-parlamentar se dá porque, em razão da instabilidade política em Magé e da possibilidade de coação de testemunhas, os processos foram desaforados. Atualmente, tramitam nas comarcas de Niterói e da capital.
Em 2010, a Justiça do Rio determinou que ele vai a júri popular pelo triplo homicídio ocorrida na emboscada da rodovia Rio-Magé. Em julho desse ano, o juiz Alexandre Abrahao marcou o julgamento para fevereiro de 2017.
Em junho, Nogueira sofreu uma tentativa de homicídio, mas escapou ileso.
O UOL tentou localizar o ex-vereador por intermédio do diretório estadual do DEM, mas a assessoria do partido informou que ele não é mais filiado e que não possui contato com ele.
O advogado que o representa na maioria dos processos, Luiz Carlos da Silva Neto, está viajando e não pode receber ligações, de acordo com sua secretária, identificada como Elaine.
A reportagem tentou, ainda, contato com outros advogados que trabalham no mesmo escritório, porém a funcionária informou que não poderiam atender por estarem em audiência.
Outros atentados
Entre os anos de 2001 e 2002, um assessor parlamentar e um ex-vereador foram mortos na cidade. O corpo de Marílton dos Santos, 49, que trabalhava na equipe da então deputada estadual Núbia Cozzolino, foi encontrado em Piabetá com um tiro na barriga, em 2001.
No ano seguinte, o ex-parlamentar Antonio Cezar dos Santos Vale, o "Cezar do Vale", foi alvejado com 12 tiros dentro do seu próprio bar, no bairro do Saco.
Em 2006, o vereador Carlos Alberto Souto (PSC), conhecido como Chuveirinho, foi assassinado a tiros.
Dois anos depois, Orney Pereira dos Santos, também conhecido como "Ney da Núbia", foi morto após ser atingido por disparos de arma de fogo na região de Fragoso. Ele era marido da então prefeita Núbia Cozzolino --que concorria à reeleição naquele ano-- e seria candidato a vereador pelo partido da mulher, o PMDB, em 2008.
De acordo com a PM, dois homens entraram numa padaria localizada no térreo do prédio onde a vítima morava e perguntaram pelo "Ney da Núbia". O peemedebista foi atender e acabou morto com seis tiros na cabeça, além de dois no corpo. Os criminosos fugiram em um carro vinho.
Vereador pela cidade de Magé, Antônio Carlos da Silva Pereira (PMDB), conhecido como "Tunico Pescador", morreu depois de ser baleado com sete tiros em Visconde de Mauá, na região metropolitana do Rio de Janeiro. O crime ocorreu em março de 2012, e, à época, a polícia informou que o político chegava a uma lanchonete, acompanhado de um homem cuja identidade não foi divulgada, quando ambos foram alvejados por dois homens que estavam em uma moto. Os criminosos fugiram.
Domínio dos Cozzolino
A política local em Magé se mistura à trajetória da família Cozzolino, que mantém representantes na Câmara e na prefeitura há pelo menos 30 anos. "É como se fosse um clã, uma 'famiglia'. Até os nomes das escolas tinham o sobrenome Cozzolino quando eles estavam no poder", explica o sociólogo José Cláudio Souza Alves.
Desde 1983, o grupo conseguiu eleger seis prefeitos. O último representante à frente do Executivo foi Anderson Cozzolino, o Dinho Cozzolino, que também presidiu a Câmara Municipal.
Em janeiro de 2016, Dinho foi preso durante a Operação Terra Prometida, deflagrada pelo Ministério Público para investigar, entre outros crimes, denúncias de corrupção e lavagem de dinheiro em Magé.
Também foi alvo do MP a irmã de Dinho, a ex-deputada estadual Jane Cozzolino --ela foi expulsa da Alerj por fraude em programa de auxílio-educação, em 2008. Ao fim da Operação Terra Prometida, os irmãos Dinho e Jane e outras 11 pessoas foram denunciadas à Justiça.
Entre 2005 e 2009, a prefeitura esteve sob comando de Núbia Cozzolino, alvo de várias investigações por crimes como corrupção, peculato, formação de quadrilha, entre outros. Uma delas resultou em seu afastamento do cargo, em 2009, e posteriormente na cassação do mandato e perda dos direitos políticos, em 2010.
Núbia foi processada e condenada pelo crime de improbidade administrativa, sob acusação de não ter pago gratificações a funcionários da prefeitura. Em 2013, a ex-prefeita foi denunciada pelo MPF (Ministério Público Federal) por dano ao patrimônio público.
O irmão de Núbia, Charles Cozzolino, também ex-prefeito de Magé, foi preso em 2009. Para o Ministério Público, ele fez parte de um grupo que desviou R$ 2,1 milhões da verba destinada a um asilo que abrigava apenas cinco idosos no município de Cambuci (a 270 km do Rio), no noroeste fluminense.
Em declarações à imprensa e versões apresentadas à Justiça nos últimos anos, os membros da família Cozzolino negaram a autoria dos crimes apontados pelas autoridades. Todas as tentativas de recurso foram indeferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio e pelo Supremo Tribunal Federal.
Dinho, Jane, Núbia e Charles não foram localizados. O advogado Luiz Carlos da Silva Neto, que já representou Núbia e Jane Cozzolino, também não foi localizado.
Na eleição deste ano, Renato Cozzolino Harb, filho de Jane e sobrinho de Núbia, é um dos candidatos a prefeito de Magé. Deputado estadual pelo PR, ele tenta, após cinco anos, reconduzir a família Cozzolino ao poder no município. Seus concorrentes são Rafael Tubarão (PPS), atual prefeito, Daniel Klein (PSOL),Paulo Afonso (PPL) e Soninha (PRB).
O UOL entrou em contato com o gabinete do parlamentar. Um funcionário informou que a reportagem deveria procurar o chefe de gabinete, identificado como Vinícius, que não atendeu os telefonemas. Segundo a última pesquisa realizada no município e registrada no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) com o protocolo RJ-02329/2016, Tubarão lidera a disputa com 35,5% das intenções de voto, e Harb tem 34%. O levantamento foi feito pela SLH Consultoria e Pesquisa no fim de agosto, e tem margem de erro de 3,5 pontos percentuais.
Atualmente, apesar das mortes recentes na Baixada e da situação peculiar vivida por Magé na última década, os cinco candidatos que estão na disputa pela prefeitura realizam normalmente suas atividades de rua.
O tema, no entanto, não passa batido. Mesmo o material oficial de campanha não fazendo qualquer menção a mortes políticas, o candidato Paulo Afonso, por exemplo, leva cartazes pedindo "paz para Magé" e "uma nova política" em seus atos de campanha.
Crédito: Hanrrikson Andrade
Via: UOL
19/09/2016