Marcelo Alonso criou, em 2015, uma página no Facebook chamada 'Funk é lixo' e se espantou com o sucesso. Hoje, na terceira versão, a página dedicada a sentar o pau no gênero preferido das periferias tem 141.111 seguidores. O sucesso levou o webdesigner, morador de uma região periférica — Guarulhos, na Grande São Paulo — a dar um passo adiante na sua cruzada: protocolou uma ‘ideia legislativa’ no Senado com a proposta de tornar o funk crime.
Segundo a proposta, “os chamados bailes de 'pancadões' são somente um recrutamento organizado nas redes sociais para atender criminosos, estupradores e pedófilos na prática de crime contra a criança e o menor adolescente e ao uso, venda e consumo de álcool e drogas, agenciamento, orgia e exploração sexual, estupro e sexo grupal”.
Alonso conseguiu o apoio de 21.983 cidadãos à proposta, o que garantiu à ‘ideia’ a transformação na 'Sugestão Legislativa 17/2017', que tramita na Casa, podendo se transformar em lei.
O projeto já tem um relator, o senador Romário (Podemos-RJ) e está em discussão na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. “Apologia em nosso país é crime seja ela em que nível for. O funk prega o extermínio de policiais. Quem me garante que amanhã não serão médicos, professores, juízes, jornalistas”, justifica Marcelo, que já foi rapper e integrou o grupo DJs and MCs.
Para a antropóloga Rose Satiko Hikiji, da Universidade de São Paulo, pesquisadora do rap e do funk, há uma richa entre os dois gêneros, mas nada que justifique uma tentativa de proibição desse tipo. “Isso tem a ver com a radicalização dos discursos que a gente vive hoje, da não aceitação das diferenças. Não deveria ser concebido em sociedades democráticas, mas já existe, de algma forma. A Lei do Silêncio, em São Paulo, por exemplo, é aplicada nas periferias, para atingir o funk e o rap, não nos bairros centrais”, diz ela.
Alonso, que se diz, em termos políticos, “brasileiro” e “decente”, acredita que está lutando para combater “crimes de saúde pública”. “Meu objetivo é rebater a estratégia programática de que funk é cultura”.
Fabio Gonçalves / Agência O Dia
Para a cantora Valesca Popuzuda, a proposta de Alonso é um ‘retrocesso total’. “Ele deve achar que música é apenas o que lhe agrada; que cultura é só aquilo que ele vê e conhece, né? Se o funk tivesse surgido na classe alta, ele seria uma das maiores ‘descobertas’ dos últimos tempos”, diz ela, com uma sonora gargalhada.
A funkeira faz questão de frisar que funk tem o papel “de entreter, de divertir, levar alegria e dança”. “Quem tem que educar são os pais”.
PRECONCEITO NA ORIGEM DA PROPOSTA
Valesca reconhece que há pontos a melhorar no funk. Projeto tem algum apoio
O senador Romário (Podemos-RJ) adota um discurso politicamente correto para falar da proposta que ele tem a responsabilidade de relatar. “É uma oportunidade de falarmos sobre cultura, educação, democracia e preconceito”.
Lula Marques/ Agência PT
No entanto, a cria do Jacarezinho que sempre curtiu um baile funk deixa claro que é contra o projeto. “É como o samba. Diziam que era 'música da ralé'. A base é a mesma: o preconceito de classe”.
Quanto à alegação de que há abusos cometidos em bailes funk — como o uso de drogas e álcool por menores —, o senador rebate: “Se fôssemos proibir os pancadões por esse motivo, teríamos que proibir outras festas, começando pelo carnaval. O problema não está na festa e sim nos crimes, que precisam ser combatidos é pela polícia”.
Para Rose Hikiji, é exatamente na questão da classe social que reside a questão. “Não é novidade esse tipo de tentativa, só que são mais pontuais. Há a repressão policial a bailes de rua, em São Paulo, hoje, como já houve no Rio muitas vezes. E esse processo se deu com outros gêneros também. A questão é que o funk, tem sua origem nos bairros pobres. Depois, é que chega aos playboys”.
Romário vai convocar uma audiência pública para debater a proposta de proibição do funk e já convidou vários artistas. Uma das que confirmaram presença, “se a agenda permitir” foi Valesca Popozuda. “Vejo apenas alguns pontos que precisariam ser melhorados. Por exemplo, a classificação etária do funk proibidão. Sou contra os que fazem apologia às drogas ou ao crime”.
O DJ Tartaruga é outro que quer defender o valor do funk no Congresso. “Funk é expressão e comportamento. A manifestacao popular e oriunda da periferia tem sua importancia na cultura — rap, funk, tecnobrega...”
Em todo o caso, a proposta é apoiada por uma parcela expressiva da população, o que se pode constatar na página do Senado onde se pode opinar sobre o projeto (até sexta-feira, 28 mil se manifestaram a favor e 33 mil, contra). Além do conteúdo das letras, o desrespeito à Lei do Silêncio é um dos motivos mais citados. “Mas a Sugestão é inconstitucional. Fere o direito de livre manifestação do pensamento. Não tem como defender isso”, garante Romário. Então, liberta, DJ!
Professora usa o funk na sala de aula
Pouca gente enfrenta o preconceito de classe como Ane Sarinara. Negra, criada na periferia de São Paulo, com passagens por orfanatos, ela se tornou professora de História em Osasco (SP), onde vive até hoje. Tem o funk e o rap na alma e no corpo, já que também é dançarina. E levou o funk para a sala de aula.
“Parto do princípio de trabalhar com o que os meninos e meninas gostam para chegar até eles”, explica Ane, que usou o funk, inclusive, na educação de jovens infratores.
Ela explica o seu método: “De modo geral, não uso letras que os meninos escutam no baile funk, só o ritmo. Trabalhamos alguns temas e vamos desenvolvendo”. No entanto, ela não foge da temática do gênero. “Uso algumas letras justamente para lidar com questões como o respeito, em especial, com as meninas, e o uso de drogas. A ideia é refletir e mostrar que existem outras possibilidades”.
Ela diz que, ao saber da proposta no Senado, “riu de nervoso” e que a sugestão vai no caminho inverso ao que ela busca, “Tento mostrar que a cultura da periferia vale, sim. Que somos criativos e podemos falar por nós mesmos. Se o funk é o meio, é o funk que a gente vai usar".
via: O dia
Reportagem; Dirley Fernandes
11/07/2017