Empresa que organiza o evento foi considerada diretamente responsável pela exploração
A força-tarefa formada por procuradores do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT-RJ) e auditores-fiscais da Superintendência Regional do Trabalho no Rio de Janeiro concluiu nesta semana operação iniciada em 22 de setembro e que resultou no resgate de 14 empregados submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão durante o Rock in Rio 2024.
As vítimas trabalhavam como carregadores dos mais diversos objetos (grades, “cases”, “leds”, bebidas, barricadas, brindes e estruturas metálicas), atuando na montagem e limpeza de alguns espaços. Os trabalhadores foram contratados com a promessa de receber diárias que variavam entre R$ 90 e R$ 150, a depender do número de horas trabalhadas. Muitos dos empregados dobravam jornadas por dias seguidos na expectativa de aumento de ganhos, chegando a trabalhar por 21 horas em um dia e voltando a trabalhar após três horas de descanso. Apesar da promessa de remuneração, os valores não foram pagos integralmente.
A ação foi realizada a partir dos indícios de que trabalhadores da empresa contratada pela organizadora do evento estavam pernoitando no escritório da empresa no interior do festival, na Arena de Tênis do Parque Olímpico, e realizando jornadas em sequência. Na madrugada do dia 22 de setembro, auditores-fiscais do Trabalho estiveram no local e encontraram 14 trabalhadores dormindo na base da empresa, deitados precariamente sobre papelões, sacos plásticos e lonas, alguns com cobertores, demonstrando que havia um planejamento prévio para pernoitar no local.
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Algumas das trabalhadoras resgatadas informaram que tomavam banho de canequinha no banheiro feminino e tiravam a maçaneta da porta do sanitário para que os homens não entrassem no local.
Os trabalhadores disseram que permaneciam no local após o término das escalas durante a madrugada para “dobrarem”, ou seja, para iniciarem novas jornadas na manhã do mesmo dia e após já terem trabalhado por mais de 12 horas. Há relatos de trabalhadores que laboraram por dias seguidos sem ir para casa ou com intervalos de três horas entre as jornadas, trabalhando das 8h às 5h e reiniciando o trabalho às 8h na mesma manhã.
Os trabalhadores disseram, ainda, que utilizavam o banheiro do andar para higiene e tomavam banho no banheiro do andar inferior (térreo da Arena), na realidade, no vestiário do equipamento esportivo olímpico, cedido e sob vigilância da organizadora do festival. A equipe verificou o banheiro do andar e constatou que o local estava muito sujo, com diversas roupas penduradas e com urina no chão, entre outras irregularidades.
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Para Raul Capparelli, auditor-fiscal do Trabalho que participou da operação, “no momento em que encontramos os trabalhadores dormindo precariamente sobre lonas e papelões foi difícil acordá-los para as entrevistas, tamanho era o cansaço deles”.
O resgate
Foi constatado o trabalho análogo à escravidão em decorrência das condições degradantes do alojamento, da jornada exaustiva e de trabalho forçado. A Auditoria-Fiscal do Trabalho lavrou 21 autos de infração punindo a empresa contratada, FBC Backstage Eventos Ltda, e 11 autos de infração em relação à realizadora do evento, Rock World S.A., que foi responsabilizada diretamente pelo trabalho análogo à escravidão, em razão da negligência na fiscalização do cumprimento da legislação trabalhista por parte da empresa contratada.
A fiscalização também emitiu guias de seguro-desemprego pelas quais os trabalhadores fazem jus ao recebimento de três parcelas de um salário mínimo cada.
Após sucessivas audiências, as empresas não quiseram firmar termo de ajustamento de conduta (TAC) junto ao MPT/RJ, que irá adotar medidas cabíveis para impedir que as irregularidades constatadas voltem a ocorrer, e também para garantir a necessária indenização por danos morais individuais às vítimas, além de indenização por danos morais coletivos.
De imediato, o MPT requisitou informações à empresa que emitiu o certificado de “evento sustentável” para o Rock in Rio, e cobrou quais providências serão adotadas a partir da constatação de trabalho escravo na edição de 2024. O MPT também questionou as empresas apoiadoras do evento para que informem quais medidas serão adotadas, considerando o possível uso de trabalho escravo na divulgação de suas marcas, inclusive na montagem de estandes, paineis e placas de anúncios.
Rock in Rio
O resgate de trabalhadores não é inédito no Rock in Rio. No evento de 2013, 93 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em uma empresa do ramo de “fast food”.
À época, foi verificado que uma empresa terceirizada cobrava pelo credenciamento, atraindo trabalhadores de diversas regiões do país. Havia também gastos dos trabalhadores com passagens, hospedagem e ingressos tendo em vista a necessidade da empresa garantir o número mínimo de ambulantes no evento. Se não trabalhassem, teriam vindo à toa para a cidade, com gastos.
Os trabalhadores ficaram alojados em comunidades próximas. Além disso, muitos deles passavam a noite ao redor do evento, sem saber se poderiam trabalhar, sem garantia de alimentação, água ou local de repouso. Havia retenção de documentos.
Na edição de 2015, foram resgatados 17 trabalhadores, também de empresa que atuava com alimentação. Auditores-fiscais do Trabalho verificaram que a jornada era exaustiva e que os trabalhadores estavam alojados em comunidades de forma precária. Não havia pausas para descanso, porque os empregados tinham que conseguir vender o estabelecido por dia. Não foi oferecida alimentação e hidratação e os documentos pessoais foram retidos.
Em 2024, a empresa que organiza e produz o Rock in Rio foi considerada diretamente responsável pela exploração do trabalho em condições análogas às de escravo, pois os trabalhadores atuavam diretamente na produção do evento como carregadores.
Para Thiago Gurjão, procurador do Trabalho responsável pelo inquérito, “não é possível tolerar trabalhadores nas condições que foram encontradas, dormindo em papelões por três horas antes de voltar para uma nova jornada de um trabalho pesado, carregando materiais, por até 20 horas. É inadmissível que isso ocorra em um evento de grande porte, com um discurso voltado para a sustentabilidade e responsabilidade social, que tem todos os recursos necessários para que isso não ocorra”.