O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou, na segunda-feira (3), ação civil pública contra a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) por dano ao sistema de justiça, ao acesso à justiça e à liberdade de expressão e de imprensa, promovidos por meio de assédio judicial contra o jornalista João Paulo Cuenca. Segundo inquérito civil realizado pelo MPF, a instituição organizou a propositura, por pastores da igreja, de mais de uma centena de ações praticamente idênticas contra o jornalista, em 19 unidades da federação, como reação a um tuíte publicado por ele em junho de 2020.
Para os procuradores dos Direitos do Cidadão do MPF no Rio de Janeiro, Julio Araújo e Jaime Mitropoulos, que assinam a ação, o ajuizamento de ações em massa representou exercício abusivo do direito de petição e do acesso à justiça, além de violar as liberdades de expressão e de imprensa, por meio da adoção de estratégia para silenciar e constranger o emissor da mensagem e o próprio ofício jornalístico.
A ação civil pública movida pelo MPF pede que a Iurd pague uma indenização não inferior a R$ 5 milhões a título de danos morais coletivos por assédio judicial, além de requerer que o valor seja destinado ao financiamento de projetos de enfrentamento da violência contra jornalistas, mediante definição na fase de cumprimento da sentença.
Os procuradores também defendem o reconhecimento da responsabilidade civil da instituição. Apesar de a Iurd alegar que as ações teriam sido propostas por iniciativa individual de cada pastor, as petições iniciais eram padronizadas, e o mesmo modelo foi repetido diversas vezes. “Os elementos instrutórios colhidos no inquérito civil comprovam a responsabilidade da Iurd pela orquestração no ajuizamento das demandas”, esclarecem os procuradores.
Entenda o caso Cuenca - Em junho de 2020, o jornalista João Paulo Cuenca fez uma postagem na rede social Twitter (atual X) cujo contexto foi uma notícia sobre a destinação de verbas de comunicação do governo federal para canais de rádio e televisão pertencentes a igrejas evangélicas.
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão ressalta o seu compromisso histórico com a diversidade religiosa e o enfrentamento da intolerância religiosa, mas aponta que, no caso, a reação teve um objetivo de silenciamento que transcendeu a discussão sobre a postagem e o próprio jornalista, atingindo a máquina judiciária e a liberdade de expressão e de imprensa.
Após a publicação, o tuíte começou a ser replicado por redes sociais em uma campanha que pedia a sua demissão do periódico alemão em que trabalhava (Deutsch Welle), o que acabou ocorrendo. A Iurd iniciou então a reação judicial em massa, que logo chegou a 144 ações, todas quase idênticas e com a mesma estratégia processual, ajuizadas em Juizados Especiais Cíveis de diferentes cidades e estados do país, dificultando a defesa, e pedindo indenizações que, na soma, atingiam o valor de R$ 3,3 milhões, acarretando grande desgaste físico, emocional e financeiro à vítima.
Caso Elvira Lobato - O MPF lembra que não é a primeira vez que a Iurd se envolve em um caso de assédio judicial. “Em 2007, a jornalista Elvira Lobato sofreu assédio judicial após publicar, na Folha de S. Paulo, matérias sobre a Iurd acerca da expansão das empresas ligadas à instituição, tornando-se ré em 111 ações judiciais”, lembram os procuradores.
Os autores das ações, todos pastores da Iurd, apresentaram petições praticamente idênticas, ajuizadas em um curto lapso temporal e distribuídas em diferentes estados e comarcas. Elvira Lobato teve enormes prejuízos devido ao uso abusivo do Judiciário por parte da Iurd, os quais envolveram, além de altos custos com a contratação de advogados e viagens para comparecimento pessoal em audiências, a precipitação de sua aposentadoria, motivada pelo desgaste gerado pelo assédio judicial.
Jornalista premiada, Lobato relatou em debate promovido pela TV Cultura que, mesmo não tendo sido bem-sucedida em suas ações, a Iurd teria saído vitoriosa ao conseguir calar o único veículo que realizava uma cobertura sistemática da igreja sob o ângulo de seus negócios. Para os procuradores, esse caso antigo exemplifica bem o dano causado pelo assédio judicial às liberdades de expressão e de imprensa.
“Para além da discussão em torno do conteúdo da postagem, o que existe neste caso é uma tentativa de silenciamento do próprio trabalho jornalístico. A reiteração do modus operandi adotado no caso Elvira Lobato demonstra o objetivo dissimulado das ações, que é o uso abusivo do Poder Judiciário para perseguir e intimidar, causando desgaste pessoal e financeiro, mesmo que não haja irregularidades no trabalho jornalístico”, apontam os procuradores.